e com a palavra...

Semana Santa mestiça na capital da província


A Semana Santa na Cidade da Bahia apresenta, não sei precisar a partir de quando, no que tange ao que é servido à mesa, certas peculiaridades.

Vale salientar que, até por não frequentar, nem saber, senão por comentários daqui e dali, de amigos curiosos ou fidalgos, as varandas dos paços coloniais e, consequentemente, os banquetes da corte soteropolitana, não posso, com total conhecimento e riqueza de detalhes, dizer quais são as iguarias servidas após as intermináveis discussões sobre o futuro político da terra, e, uma ou outra vez, a respeito de certa moça que, em trajes provocantes, e, dissimulada ou não, chama a atenção dos convidados, e atiça o ciúme das senhoras.

Conheço a mesa da plebe. Eu e meu avô, o velho Mário, que é um exímio pescador de feriados e conhecedor profundo da arte do preparo da boa moqueca, que, com o perdão dos amigos capixabas, nada tem a ver com seu homônimo, que mais parece um escabeche feito às pressas. Chamem de peixada, não me importo. A técnica e os ingredientes são praticamente os mesmos. Mas, sem dendê, amigo, “nem mesmo a cor existe! E o amor? Nem mesmo o amor existe...”.

A ceia baiana transita pelo regional. É um dos indicativos de nossa miscigenação. Doce expressão do que chamamos sincretismo.

Do cento de quiabo cortado em pedacinhos, ao pão embebido em leite de coco, em cujo caldo adiciona-se camarão, castanha de caju, cebola, cheiro verde, amendoim, gengibre e dendê - o vatapá -, até o peixe, em seu último mergulho no azeite, aguardando, impaciente, o leite de coco e a última prova de sal.

O arroz de coco, para os apaixonados. Confesso ainda preferir o comum, branco e soltinho. Um rompimento à tradição, que não há de cobrar rigidez ao paladar. Não esta semana.

A mesa baiana na Semana Santa é um palco de misturas. O bacalhau, iguaria difundida na província pelos portugueses, mistura-se à cozinha africana como o café, o cigarro e o conhaque aos que escrevem de madrugada. Uns trazem consigo ainda a devoção às divindades a quem os pratos são dedicados. Outros ainda se entregam à gula dionisíaca, ao furor insano de degustar o feijão doce na mesma empreitada em que a moqueca é meticulosamente devorada.

Religiosa ou não, há, mesmo na voragem pagã, certa liturgia implícita.

E o vinho. Aliás, não tenho notícia de povo que celebre o sangue do Homem tão bem quanto os de cá. Não digo somente os nativos, mas os que habitam esta terra, vindos de outras realidades. O vinho aqui se converte em água, tal a fúria com a qual é consumido, sorvido como néctar em coxas sonâmbulas.

Depois, resta a rede, o violão, a poesia praieira e a pele macia da morena a se aconchegar – quase sempre reclamando que comeste demasiado, bebeste além da conta e, que insultou algum dos presentes -, normalmente um daqueles primos folgados que insiste em tirar todas as damas para dançar, inclusive as que rejeitam o convite.

Diz também que já é hora de ir, pois, (sei que esqueci de mencionar antes, mas a melhor ceia é aquela apreciada em casa alheia, serve até a da sogra, não importa) com tanta gente bêbada nas ruas, não é, definitivamente, um bom dia para sair tarde de qualquer lugar.

Comments :

1
Unknown disse...
on 

Uau,que texto saborosa e deliciosamante bem escrito...

vontade, vontade, vontade...rs

Beijos

Giselle Zamboni

Hei, vc é muito bom, muito bom Moço!

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