e com a palavra...

Documentário? Enquanto adolescente agoniza, policial filma e ‘dirige’ a cena.

“Quando a realidade parece ficção, é hora de fazer documentários” (Frase do spot do programa DOC TV da TVE – BA)


Bairro de Cajazeiras XI, por volta das 22h de quinta-feira. Bastava adentrar no estacionamento central da Quadra ‘A’ para notar que havia algo estranho esta noite. Tinha um burburinho diferente na rua. Um misto de curiosidade, comoção, sadismo e alívio. É muito estranho ver tanta gente na rua, por aqui, para a primeira quinta pós carnaval. Ainda mais a esta hora.

O povo se reunia em torno de uma viatura da Polícia Militar. Alguns metros depois, se percebe o motivo de tanto alarde: uma pessoa estendida, ainda parcialmente encoberta pelos curiosos. Um jovem, nada mais que dezessete/dezoito anos. As mãos no peito, e, sobre ele, uma camisa vermelha, que, devido a pouca luminosidade era impossível determinar se era essa sua cor original ou se estava tingida de sangue. Sim, era sangue! Não mertiolate, molho de tomate ou qualquer outro artifício cênico.

- O que houve?

- ‘Derrubaram’ um ainda a pouco, disse o rapaz de olhos negros, fundos e levemente assustados (talvez pela sensação que todo ser humano tem ao ver alguém da sua faixa etária morrendo).

- É daqui?

- Não, acho que veio comprar por aqui e acabou baleado.

- Alguém viu o que aconteceu?

- Não sei, diz o garoto louro perto do corpo, mas acho que esse aí não levanta mais não!

De repente, da viatura desce um homem, impassível como qualquer pessoa minimamente acostumada a situações como essa. Em suas mãos uma filmadora portátil, daquelas que se encontra em qualquer liquidação nas piores lojas do ramo. Ele avança um pouco para perto da vítima, câmera em punho, gira em torno do jovem, depois fala ao colega no volante da viatura: dê uma volta e venha de frente como se ‘tivesse’ chegando agora! Da primeira vez não ficou boa (a tomada? Estão gravando um filme aqui e não contaram a ninguém?). "Isso!", continua.

- Eles devem estar gravando para mandar pra um desses programas da hora do almoço, exclama um garoto a certa distância.

A multidão não arreda pé da cena. Não era filme. Coisa melhor - realidade! O horror cotidiano parece interessar mais que a ficção. Todos parecem torcer por um desfecho. Difícil saber qual nesse momento.

Mais a frente um policial reformado, morador local, balança a cabeça e, com um ar reprovador se exaspera: eles não vão fazer nada? Que P... de procedimento é esse? Chamam o SAMU e tá resolvido? Quantas vezes [em situações como esta] eu já carreguei de próprio punho um ferido, em piores condições até, joguei na viatura e levei prum hospital? Tão esperando que morra?


O policial cinegrafista começa então a 'entrevistar' o garoto:


- Você é de onde hein?

- Da Fazenda Grande II, senhor, sussurra.

- Mora lá há muito tempo?

(Não deu para ouvir a resposta)

- Quem fez isso com você, ô menino?

- (tosse) Não sei não senhor!

As pessoas continuam cochichando em volta:

- vai morrer!

- Cadê o Samu, gente!?

- Ai meu Deus, pensei que fosse o Marquinhos!

- Nossa, quando ouvi o tiro saí correndo, mas não vi nada além do povo cercando o garoto.

- Ele veio daquele beco ali.

- É droga! Pois é, minha filha, deveu e não pagou, o tráfico cobra!

Dez e quinze e não é possível extrair muita coisa da situação. O policial continuava seu documentário particular. O povo a vomitar conjecturas acerca do ocorrido. Nada concreto. Fato mesmo só o adolescente estendido, peito num sobe-e-desce convulsivo, esperando socorro enquanto quem deveria dar o primeiro auxílio brincava de videomaker.

Já a certa distância, falta estomago [talvez coragem, não foi excesso de autopreservação] para retornar e esperar o desfecho ao lado da 'torcida', ou, no mínimo, anotar a placa do carro da PM, que, em vez de tomar uma providencia com o mínimo de humanidade esperada preferiu seguir o ‘procedimento' ligando para o serviço de ambulância popular de emergência.

As pessoas vão ficando menores, o burburinho mais distante até que mais um omisso enfia a chave no portão de casa, entra, tranca todas as fechaduras, se enfia embaixo do chuveiro, depois das cobertas, e dorme (ao menos tenta) esperando nunca entrar no seleto time de jovens negros da periferia que, culpados ou não, mal conseguem chegar com vida ao portão de casa para contar histórias como essa: sem desfecho, cheia de dúvidas, mas com uma única certeza: o fundo do poço ainda é mais distante do que se pensa!

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