e com a palavra...

Casablanca: lágrimas, risos e uma canção sobre o tempo



“Morena dos olhos d'água, tire os seus olhos do mar, vem ver que a vida ainda vale o sorriso que eu tenho pra lhe dar.” (Chico Buarque)

Não sei se foi a canção. Talvez a história toda, afinal, é o romance melhor narrado da história do cinema no século XX. Não. Está decidido! Foram os olhos úmidos da Srta. Lund, quando cruzaram, novamente, o olhar do Sr. Blaine, após tanto tempo, que meu deu o mais concreto conceito de felicidade.
Acho impossível rever esta cena sem, também, molhar os meus. Como não desejar, não sonhar com um reencontro desta intensidade? Dá para sentir as bocas secas, o aperto no peito e o suor frio escorrendo das mãos. Todos deveriam ter seu momento “As time goes by”. Isso deveria ser item básico na cartola de qualquer sonhador.
O capitão Renault, homem de grande sensibilidade apesar da couraça rústica que tempos e paragens hostis sempre impõe às pessoas, compreenderia. Mil vezes, se fosse necessário. O ar seco e a incerteza presente em Casablanca tornam os mortais suscetíveis a toda sorte de sentimentos.
É possível ser feliz no deserto, contanto que se possa contar com um lugar agradável e cheio de aventuras (o “Rick’s”), um pianista amigo de “copo e de cruz” (perdoe-me, Chico Buarque, pelo excesso de citações), e a visão reincidente da Ingrid Bergman sentada junto à pianola, com os olhos rasos d’água. As coisas fundamentais ainda valem, insista o tempo em passar, ou não.
Mesmo que dezembro em Casablanca significasse outro tempo em qualquer outro lugar, seria capaz de quebrar os relógios de todos os bares do mundo, se isto significasse ver a Srta. Ilsa Lund saltar porta adentro. Tentaria sorrir e não hesitaria em pedir que tocassem, ao menos mais uma vez, aquela velha canção que fala do tempo e das coisas perenes.
Talvez o melhor momento para encontrar a felicidade seja aquele em que o mundo lhe cai sobre a cabeça. Que lhe tenham tirado quase tudo, deixando apenas a esperança. Bem na hora em que todos os sonhos vestem azul e brindam às luzes que estão prestes a serem mitigadas. É aquela força que surge do sinistro surpreendendo a todos.
Para ser feliz basta abrir as janelas e deixar que o vento purifique o lugar. Deixe alguém livre, por um instante que seja, para escolher seu caminho. Não tente reviver aquele momento precioso. Ele é único! Não volta. No entanto, não o esqueça. Ele te pertence também, afinal, o que é a felicidade, senão fragmentos de vida formando um mosaico colorido ao nosso redor? Compete-nos juntar os cacos e formar nosso próprio conceito.
Sim, é isso. Foi a canção! A música adequada na hora exata. Ela sempre nos transporta a circunstâncias marcantes. Às vezes isso pode até ser embaraçoso. Acho difícil alguém conseguir reproduzir aquele instante - Ingrid Bergman lacrimosa, ou melhor, dominando as lágrimas, enquanto o Rick, lá, impassível, deixando cair a máscara amoral. Sucumbindo ao mais ingênuo e complexo dos sentimentos.
Eis o tolo mais feliz que já vi. Esta cena ilustra, definitivamente, quando o silêncio é mais “ensurdecedor” que uma multidão, em uníssono, entoando palavras de ordem. Engraçado como tanta coisa se altera, enquanto outras, nem tanto, com o passar do tempo.
Mas, costuma-se esperar por um novo dia, sempre! O mundo não pulsa sem sonhadores. A paixão alimenta o planeta, seja ela justa ou hedionda. Não nos cabe julgar. Ela diz respeito tanto ao amor quanto à guerra, e isso é tudo que nos compete saber.
O resto pertence ao canto dos pássaros e às tardes azuis e romanescas dos filmes da década de 1940. Deixa que o tempo passe. É só isso que podemos fazer – sonhar, em preto e branco, com uma noite longínqua, em um bar perdido no deserto, perto do fim do mundo.

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