e com a palavra...

Ética retalhada

“... vocês ficarão aliviados ao saber que tudo não passou de um entretenimento” (Orson Welles no fim da ‘cobertura’ da invasão alienígena)
Por: Carlos Eduardo

Subentende-se por ética um código comportamental de determinada sociedade, em consonância com valores estabelecidos numa época especifica. Há, no entanto, situações que passam despercebidas, podendo divergir diretamente desses princípios pré-concebidos. Nasce aí a dúvida acerca dos limites convencionados. Como identificar e desagregar o que é “bom” para a comunidade daquilo que pode beneficiar uns poucos?
O soco - Montevidéu, 23 de novembro de 1981, final da Taça Libertadores da América entre Flamengo e Cobreloa do Chile. Após vitória flamenguista no Maracanã, e caça aos rubro-negros no Chile, onde venceram os donos da casa, o neutro Uruguai foi palco do decisivo embate. A história é conhecida, o Flamengo venceu por 2 a 0, sagrou-se campeão e todos foram felizes para sempre, ok?
Mas, como nos melhores contos de fadas alemães, nem tudo é como parece, e, nem sempre a história é contada de maneira exemplar, edificante. Minutos antes de terminar a partida, já decidida, o técnico rubro-negro, Paulo Cesar Carpeggiani manda o ponta-esquerda Anselmo entrar em campo com uma missão: vingar os companheiros agredidos no jogo anterior, socando um adversário.
O ato provocou confusão em campo. Anselmo foi expulso, levando consigo dois jogadores adversários. Dever cumprido. Mas, não está entre os méritos históricos das atividades esportivas a suspensão temporária das hostilidades e a manutenção das boas relações entre os povos? Até que ponto uma atitude agressiva, e vingativa pode desmerecer uma vitória obtida com reconhecido merecimento? O resultado não podia mais ser alterado. A atitude reflete a sanha humana primitiva de se impor através da força.
A invasão - EUA, outubro de 1938, adaptando para o rádio a obra “Guerra dos mundos” de H.G. Wells, Orson Welles, ator, jornalista e cineasta norte-americano, provocou pânico nos ouvintes da rádio CBS (Columbia Broadcasting System) e de suas retransmissoras, simulando uma invasão marciana na cidade de Grover’s Mill, New Jersey, causando alvoroço sem precedentes.
O fato serviu para consolidar a posição do rádio como veículo de massas, comprovando seu poder e influência. Segundo jornais da época, a encenação contava com sons entrecortados por momentos de um silêncio mórbido, o que aumentava a tensão e aclimatava o pânico dos ouvintes. Tudo se deu como uma cobertura jornalística.
Estima-se que cerca de seis milhões de pessoas nos EUA acompanharam os relatos, que contavam com intervenções ao vivo de repórteres no meio da programação, criando um ambiente propício ao terror, além da palavra de especialistas que comentavam as conseqüências de um fato deste porte.
No início da transmissão, Welles informou ao público sobre a representação, mas, quando grande parte dos ouvintes sintonizou a CBS, a apresentação estava em andamento passando então a aceitar a situação como verdade. Houve fuga em massa das cidades vizinhas àquelas onde, supostamente, ocorria a invasão, sobrecarga nas comunicações, o que correspondia aos relatos, pânico generalizado, pessoas desesperadas invadindo as ruas. Além de Jersey, o caos paralisou as cidades de Newark e Nova Iorque.
Responsabilidade - A “brincadeira” de Welles ancorou-se na credibilidade que a comunidade deposita nos meios de comunicação. É nesta linha tênue que se sustenta a indústria da informação. Quando se pára de crer em determinado veículo ele perde sua força. É justamente esta troca de confiança que cativa o ouvinte/leitor/telespectador. Desfeito tal laço torna-se impraticável a transmissão de informações.
Cabe, em tempo, citar a atuação da mídia sensacionalista que, a seu modo, inflige medo nas pessoas através da exibição gratuita, com a desculpa de que precisam mostrar a verdade, da miséria humana em sua pior face. Este jornalismo selvagem e sem controle não costuma ater-se a convenções sociais e exibe todo o seu espetáculo grotesco geralmente ao meio-dia, quando os cidadãos estão, em sua maioria, livres de afazeres e, portanto aptos a digerir crua, a realidade que lhe é apresentada.
Os transmissores de informação, notoriamente conscientes de seu poder diante da opinião pública precisam encontrar meios responsáveis para divulgar a notícia, de modo que esta seja interessante, sem, no entanto comprometer sua imagem perante seus receptores, nem precisar utilizar de meios sensacionalistas e, por vezes, inescrupulosos para conseguir seu intento: a audiência, ou a venda de jornais.
Castelo de cartas marcadas - Brasília, 2009, o deputado federal pelo DEM de Minas Gerais, Edmar Moreira, concorre como candidato avulso ao cargo de 2º vice-presidente da câmara. Até aí, tudo bem, afinal a democracia ainda impera no país.
Eis que surge um fato, que soaria fabuloso não fossem imagens nos jornais e na televisão, que ilustram a história. Um castelo, em estilo medieval, não declarado à Receita, avaliado em cerca de R$ 20 milhões, em São João Nepomuceno, interior mineiro, é identificado como propriedade do deputado. Suspeita-se então de que o imóvel foi construído com o desvio de dinheiro público.
Edmar, que era apontado, até então, como candidato provável ao cargo de corregedor-geral da casa, função que, a princípio, passa uma idéia de que seu ocupante deve ter o mínimo de conduta ética, justificou o ocorrido, dizendo que, por estar em nome de seus filhos o bem não deveria constar como sua propriedade. Não se esquecendo de ressaltar que sua trajetória política sempre foi pautada pela transparência, e essas coisas que diz todo político acusado.
Bem, seu partido, o DEM, que engendra uma árdua luta para livrar-se da imagem deixada por sua sigla anterior, o PFL, e tornar-se um partido defensor dos ditames éticos da nação – assim como era o antigo PT, não sei se vocês lembram – decidiu entrar na história, exigindo seu mandato junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Xeque-mate - Edmar abdicou (verbo adequado em casos de habitantes de castelos, palácios e afins) da vice-presidência, sem abrir mão da corregedoria-geral, que lhe escapou em seguida, restando agora o risco de perder também o mandato. Foi sendo aos poucos derrotado como um rei acuado num jogo de xadrez.
Recentemente, o deputado solicitou desfiliação do DEM, tentando não perder nos bastidores o que conquistou nas urnas. Contudo, pesa ainda sobre ele a acusação de ter desviado valores relativos às contribuições previdenciárias que deveriam ter sido descontadas do salário dos funcionários de suas empresas.
Assim se vê um funcionário público indo contra tudo o que seu cargo e aqueles que o concederam esperam. Sem comprometimento algum do eleito para com seu principal patrão – a população. A regra vigente aqui é a do acúmulo, e da preservação de bens privados a partir do uso de recursos públicos.
Quem sabe, com a intervenção de São João Nepomuceno, não sua cidade, mas, o santo padroeiro mesmo, que tem certa experiência em ouvir e ajudar quem tem segredos “cabeludos”, Edmar Moreira consiga seu intento. O que seria a derrota da democracia a partir de uma conduta imoral. São João Nepomuceno é tido como o confessor da rainha Isabel Stuart da Boêmia, atual República Checa. Dizem que levou para o túmulo os segredos da rainha. Nestes tempos, segredos reais costumavam ruborizar os mais libertinos habitantes de Sodoma e Gomorra juntos. Hoje, soariam como cantigas de roda em boca de criança.

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